Mesmo protegidos por lei, os campos úmidos do Cerrado seguem esquecidos por políticas públicas, proprietários rurais, consultorias ambientais e órgãos de fiscalização. É o que mostra um artigo assinado por pesquisadores da Unicamp, UnB, UFMG e UFSC, publicado na revista Environmental Advances.
Essas áreas, chamadas de olhos d’água difusos, são formações onde a água subterrânea brota de forma espalhada, sem um ponto único de nascente, mantendo o solo permanentemente ou sazonalmente úmido. São campos fundamentais para a segurança hídrica, pois armazenam água da chuva, recarregam aquíferos e garantem o fluxo de rios mesmo em períodos de seca.
Os pesquisadores alertam que esses ecossistemas são ignorados em mapas e licenciamentos, e não aparecem de forma clara em instrumentos como o Cadastro Ambiental Rural (CAR), que ainda trata nascentes e olhos d’água difusos como se fossem a mesma coisa – o que dificulta a aplicação da lei na prática.
Entre 1985 e 2020, o Cerrado perdeu mais de 580 mil hectares dessas áreas úmidas, sendo 61% convertidos em pastagens e lavouras — o que compromete o fluxo de água de rios importantes, inclusive de bacias que alimentam o Pantanal e a Amazônia.
A Lei de Proteção da Vegetação Nativa (12.651/2012) define como Área de Preservação Permanente (APP) todo afloramento natural do lençol freático, incluindo os olhos d’água difusos. Na prática, porém, apenas as veredas costumam ser reconhecidas como APPs, por conta dos buritis. A pesquisadora Alessandra Bassani explica que a legislação protege as áreas onde o lençol freático aflora, mas o termo “olhos d’água” ainda é aplicado apenas a nascentes visíveis.
“Persiste um viés institucional e técnico que direciona a proteção apenas para as águas superficiais visíveis, como aquelas associadas a margens de rios ou a olhos d’água pontuais, caracterizados por um único ponto de exsudação da água subterrânea e pela presença de lâmina d’água aparente”, enfatiza Bassani.
Já Rafael Oliveira, professor da Unicamp, alerta: “A proteção dos olhos d’água difusos é crucial para evitar o colapso hidrológico do Cerrado, do Pantanal e de vários rios que formam a bacia amazônica.”
O estudo defende medidas simples, mas decisivas: usar corretamente os termos “olhos d’água” e “olhos d’água difusos” em estudos, pareceres, licenças e mapas; investir em mapeamentos de alta resolução e tecnologias como imagens de satélite, piezômetros e análise de solos. Métodos de campo fáceis, como cavar 30 centímetros no auge da estação chuvosa para verificar a presença de água, também podem ajudar. Plantas como Drosera e Utricularia são indicadores confiáveis de solos encharcados.
Sem essa proteção, o Cerrado perde sua capacidade de armazenar e liberar água de forma contínua. Isso já resulta em rios com menor vazão, falta de água e risco para o abastecimento e a produção rural.
Para Bassani, aplicar a lei corretamente é um passo decisivo para garantir a segurança hídrica e climática do país.
“O Brasil tem a rara oportunidade de alinhar ciência e política pública para proteger ecossistemas já reconhecidos por lei, mas esquecidos na prática”, conclui.
LEIA MAIS
Cerrado perdeu água continuamente entre 2000 e 2019
Maioria dos brasileiros ignora que Cerrado é fonte nacional de água