Por André Garcia
O Cerrado está perdendo água em velocidade preocupante: o volume transportado pelos rios da região caiu 27% desde a década de 1970. Isso significa que o bioma tem deixado de bombear o equivalente a 30 piscinas olímpicas por minuto, afetando seis grandes bacias hidrográficas que abastecem boa parte do País.
Segundo o relatório “Cerrado: O Elo Sagrado das Águas do Brasil“, publicado nesta segunda-feira, 23/6, pela Ambiental Media, o avanço da agropecuária, o desmatamento e as mudanças climáticas têm alterado o ciclo da água, ampliando os riscos de escassez para a produção de alimentos, geração de energia e consumo humano.
“O impacto do desmatamento e das mudanças climáticas no bioma pode agravar a situação de uma bacia que já sofre com desertificação, escassez de água e secas relevantes. Na prática, estamos furando a caixa d’água, com uma irrigação da agricultura completamente desregrada”, explica Yuri Salmona, geógrafo e doutor em Ciências Florestais pela Universidade de Brasília (UnB), que coordenou o estudo.

As águas das seis bacias hidrográficas do Cerrado alimentam rios de todos os biomas do Brasil, incluindo a Amazônia, segundo relatório (Foto: divulgação/Rodolfo Almeida/Ambiental Media)
Demanda crescente, oferta em queda
Entre as principais causas da redução de água no Cerrado estão a expansão das áreas agrícolas irrigadas e o desmatamento acelerado. De acordo com o levantamento, a área ocupada com soja nas seis principais bacias hidrográficas do bioma cresceu quase 20 vezes desde 1985, enquanto a vegetação nativa encolheu 22%.
Entre 1985 e 2022, a área plantada com soja cresceu 978% na bacia do Paraná, 7.082% no São Francisco, triplicou no Taquari e teve um salto de mais de 200 mil vezes no Parnaíba, saltando de sete hectares para 1,6 milhão de hectares. No conjunto das seis bacias analisadas, a vegetação nativa encolheu 22%, segundo dados do MapBiomas.
Em contrapartida, no rio São Francisco, a vazão mínima despencou 50%, com uma redução de 28% nas chuvas e aumento de 11% na evapotranspiração. Na bacia do Paraná, que abastece a usina hidrelétrica de Itaipu, a queda da vazão foi de 18%, acompanhada por uma redução de 21% nas chuvas. A situação é crítica também no Parnaíba, que registrou a maior perda de pluviosidade entre as bacias analisadas: 38%.
“O Pantanal, a maior planície alagada do mundo, depende em 100% da água que nasce nas cabeceiras de rios dentro do cerrado. Estamos impedindo que a água chegue até lá e acabando com o pantanal sem necessariamente ampliar a área desmatada no bioma”, alerta Salmona.
Clima extremo agrava o cenário
O levantamento, feito com base em registros da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) mostra ainda que as mudanças climáticas têm intensificado a evapotranspiração no Cerrado. Com isso, o período chuvoso encurtou em cerca de dois meses nas últimas décadas.
E, apesar da concentração de chuvas em períodos mais curtos, a água não consegue infiltrar adequadamente no solo, o que agrava os riscos de enchentes e erosão.
“Não precisa faltar chuva para haver um cenário de seca. Basta que a água venha na hora errada”, alerta Salmona.
Conflitos por água ganham força
Além disso, uso intensivo da água por grandes projetos agrícolas já tem gerado conflitos. Para se ter ideia, cerca de 99% da água outorgada na região vai para a agricultura, deixando a população local em situação de vulnerabilidade. Diante disso, comunidades de Correntina, na Bahia, protestaram recentemente contra a concessão de grandes volumes de água para fazendas irrigadas durante um período de estiagem.
“Um único poço é capaz de abastecer a cidade por três dias. A população de 12 mil habitantes consome cerca de 3 milhões de litros de água por dia. Eis a diferença”, afirma Marcos Rogério, líder comunitário que acompanhou o episódio.
Outro exemplo da pressão sobre as fontes de água vem da expansão das plantações irrigadas, especialmente nas áreas do Matopiba, onde rios como o Ondas, o Arrojado e o Corda já apresentam sinais de esgotamento.
“Os controles regionais e nacionais das águas do Cerrado foram substituídos por atores que dominam a cadeia global de produtos agropecuários”, pontua Salmona, ao destacar a influência crescente de interesses privados na gestão dos recursos hídricos.
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