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Abertura de novas áreas para o agro anuncia crise hídrica inédita

Abertura de novas áreas para o agro anuncia crise hídrica inédita

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Por André Garcia

Majoritariamente amparada pela lei, a conversão de 50% do Cerrado em lavouras de soja, milho, cana e algodão garantiu a prosperidade do agronegócio nas últimas décadas. Mas a estratégia está por trás de uma crise hídrica sem precedentes. Na principal fronteira agrícola e região de maior crescimento populacional do país, o desmatamento intensificou a seca e reduziu a superfície das águas e a vazão dos rios.

Nesta semana, quando se comemora o Dia Mundial da Água, o Gigante 163 traça um panorama hídrico da região e aponta caminhos para a sua conservação, o que também significa a manutenção do clima, do ciclo dos rios e da segurança econômica do Brasil. Nesta terça-feira, 19/3, explicamos como a ampliação da área desmatada no bioma piora a crise climática e condena o desenvolvimento do agronegócio.

“Já se ocupou uma área mais do que suficiente para a produção e tanto isso é verdade que mais de 30 milhões de hectares de pastagens degradadas estão aí para serem melhor ocupadas com técnicas mais adequadas, ou recuperadas. Não há argumento racional para ampliar o desmatamento para a agropecuária”, afirmou à reportagem o diretor executivo do Instituto Cerrados, Yuri Salmona.

Em fevereiro deste ano, a Embrapa publicou estudo que mostra a existência de aproximadamente 28 milhões de hectares de pastagens plantadas com níveis de degradação intermediário e severo e que apresentam alto potencial para culturas agrícolas no Brasil. A conversão desse quantitativo poderia aumentar em 35% a área total plantada com grãos no País em relação à safra 2022/23.

Cerca de 11 milhões de hectares de pastagens com degradação “severa” estão em áreas com potencial agrícola “bom” ou “muito bom” enquanto 18 milhões de hectares com nível de degradação “intermediário” estão em áreas com potencial agrícola “bom” ou “muito bom”. Ao todo, o Brasil tem 177 milhões de hectares de pastagens, dos quais 109,7 milhões apresentam limitação de moderada a severa.

Foto: Adriano Gambarini/WWF Brasil

A maior parte dessas áreas fica no Cerrado. Em resumo, isso significa que nem mais um palmo do bioma precisa ser desmatado para que o agronegócio continue avançando. Ainda assim, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o bioma perdeu 3.798 km² de vegetação nativa, no acumulado de agosto de 2023 a fevereiro deste ano. Na comparação entre fevereiro de 2024 e fevereiro de 2023, o aumento no desmate foi de 19%.

“É como se alguém com fome abrisse uma geladeira para olhar dentro, visse a geladeira cheia de comida e ainda assim decidisse ir ao mercado fazer compras. Não faz sentido. É importante a gente saber que o desmatamento vai contra o próprio agronegócio, além de ir contra comunidades tradicionais”, pontua Yuri.

Devastação + mudança climática = crise hídrica

Uma pesquisa publicada na Global Change Biology, que quantificou os impactos das transições de uso de solo aponta que o Cerrado já está 10% mais seco e 1º C mais quente, na comparação com a linha de base histórica de vegetação nativa. Em seu estudo, Yuri constatou que em 56% dos casos a redução de água no ecossistema está relacionada à devastação, enquanto em 44%, às alterações climáticas.

Foto: Wenderson Araújo/Agência Brasil/Trilux

“Mas os dois [desmatamento e crise climática] pesam muito, ou seja, esses dois elementos se relacionam e se amplificam. E ao invés de estarmos, por meio do controle do desmatamento e da mudança do solo, mitigando as mudanças climáticas, estamos intensificando os efeitos dela sobre a disponibilidade hídrica”, explica.

Como já explicamos, diversos fatores vêm deixando o bioma mais seco, em especial o desmatamento, que acentua a chamada evapotranspiração potencial. Essa dinâmica se torna ainda mais problemática se considerarmos que, em torno de 80% a 90% da água dos rios do bioma tem como origem a água subterrânea.

Com relação as alterações no clima, a disponibilidade hídrica pode cair até 40% em regiões hidrográficas do Norte, Nordeste, Centro-Oeste e parte do Sudeste até 2040, conforme aponta a primeira edição do estudo Impacto da Mudança Climática nos Recursos Hídricos do Brasil, lançado pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) em janeiro.

“O que está aumentando é a radiação solar. Está ficando mais quente. Você tem mais incidência, está ficando mais quente e você tem maior evaporação do vapor, da água, e é aí em que a mudança climática está atuando, muito claramente, de forma generalizada, no Cerrado”, resume Yuri.

Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil

Água envenenada

A seca não é a única ameaça às águas do bioma. Todo ano, são lançados 600 milhões de litros de agrotóxico ali, segundo o relatório “Vivendo em territórios contaminados: um dossiê sobre agrotóxicos nas águas do Cerrado. O documento, lançado em 2023, foi elaborado pela Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, Comissão Pastoral da Terra (CPT) e pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Neste ano, um estudo publicado pela revista Environmental Advances mostrou que as porções média e alta do Rio Araguaia concentram níveis de pesticidas que tornam a água imprópria para o consumo humano e até mesmo animal. No total, oito substâncias foram encontradas em todas as sub-bacias da região, situada no centro do Cerrado.

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