Por André Garcia
Apesar de concentrar 60% da produção agrícola do Brasil e ser a savana mais biodiversa da Terra, o Cerrado ainda tem papel secundário nas políticas públicas e na agenda climática internacional. Há poucas semanas da COP 30, no Dia do Cerrado, 11/9, especialistas alertam que dar protagonismo ao bioma significa não apenas garantir o acesso à água e o equilíbrio do clima, mas o futuro da agropecuária.
A negligência começa no Congresso. Um estudo do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) mostra que, dos mais de 30 mil Projetos de Lei, Emendas Constitucionais e Medidas Provisórias em tramitação na Câmara dos Deputados, apenas oito tratam da proteção ou da criação de áreas de conservação específicas para o bioma.
“Juntos, a Amazônia e o Cerrado responderam por 83% do desmatamento em 2024, sendo que o Cerrado responde por mais da metade de todo o desmatamento do país. São ecossistemas interdependentes, que precisam ser considerados em conjunto nas políticas de mitigação e adaptação. Espera-se que a COP seja um instrumento que amplifique essa interdependência”, diz o pesquisador do IPAM, Dhemerson Conciani.
Outro desafio é o baixo percentual de Reserva Legal previsto no Código Florestal para propriedades no Cerrado, de apenas 20%. Embora 45% da área dessas propriedades ainda tenha vegetação nativa, até 31 milhões de hectares podem ser desmatados legalmente. Para Conciani, incluir o bioma nas legislações nacionais e internacionais contra o desmatamento é fundamental para reverter esse cenário.
“Sem isso, a própria competitividade do agronegócio brasileiro pode ser posta em xeque no longo prazo, ameaçando setores-chave da economia e aumentando o risco de insegurança hídrica e alimentar”, explica.
Futuro em risco
Desde 1985, o Cerrado perdeu 40 milhões de hectares de vegetação nativa, segundo dados da Rede MapBiomas, tornando-se um dos principais vetores das emissões brasileiras de gases de efeito estufa. Além disso, no período, 89 milhões de hectares foram atingidos pelo fogo. As propriedades rurais têm papel central nesses resultados, concentrando 72% do desmatamento e 58% da área queimada.
Esses dados mostram que as decisões tomadas no campo têm impacto direto para a economia: os polinizadores aumentam a produção de frutas e hortaliças. A vegetação nativa regula o ciclo da água, reduzindo a necessidade de irrigação e protegendo nascentes. Solos férteis garantem produtividade e reduzem custos com insumos, formando a base natural que sustenta a produção no bioma.
Pagamento por conservação
Diante dessa realidade, uma das principais propostas dos pesquisadores é a ampliação de políticas de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA). Esses programas remuneram produtores que preservam áreas além da reserva legal, restauram áreas degradadas e mantêm práticas conservacionistas. Ou seja, além dos ganhos indiretos, conservar pode significar renda extra.
“Apesar das divergências, existe consenso quanto à urgência de reconhecer, mensurar e valorizar esses serviços, sobretudo em um país que abriga biomas de grande diversidade e cuja economia depende fortemente da agricultura”, destaca a pesquisadora da Embrapa Cerrados, Fabiana Aquino.
Um exemplo é o programa Conserv, já em andamento na Amazônia Legal. Desde 2020, ele protegeu mais de 27 mil hectares que poderiam ser legalmente desmatados, evitando a emissão de mais de 2 milhões de toneladas de CO₂. Produtores que participam do Conserv recebem por manter a vegetação nativa em pé — e, mesmo após o fim dos pagamentos da primeira fase, continuam preservando.
Conservar para produzir
Embora promissor, o PSA não é a única solução. Em muitos casos, os valores pagos ainda são insuficientes para gerar mudanças estruturais ou competir com atividades mais rentáveis que degradam o meio ambiente. Por isso, Fabiana aponta que é necessário avançar em modelos de negócio que integrem conservação e mercado, para que os benefícios das práticas sustentáveis retornem efetivamente ao produtor.
Pesquisas da Embrapa mostraram que a simples presença de cobertura vegetal pode reduzir em mais de 50% as perdas de solo e água em comparação ao solo descoberto. Logo, a adoção de práticas como plantio direto, integração, rotação ou sucessão de culturas, diversificação de forrageiras, uso adequado de maquinário e manutenção das Áreas de Preservação Permanente e da Reserva Legal é decisiva.
“Essas práticas mantêm a fertilidade do solo, favorecem o acúmulo de carbono orgânico, estimulam a atividade biológica, reduzem perdas de solo e água e garantem cobertura permanente contra impactos erosivos”, diz a pesquisadora, ao acrescentar que essa visão integrada permite avaliar, de forma mais ampla, os ganhos e perdas associados a diferentes formas de uso da terra.
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